segunda-feira, 5 de novembro de 2018

Em tempos de #MeToo e Time’sUp, 'Be Natural' conta (finalmente!) a história da mulher que foi pioneira do cinema


Apagado dos registros da história cinematográfica, o nome de Alice Guy-Blaché, contemporânea dos irmãos Lumiére, volta à luz por meio de bom documentário produzido e narrado por Jodie Foster

por Marcella Vieira*

Não é sempre que vemos um filme que tem como produtores executivos Jodie Foster, Robert Redford e Hugh Hefner (sim, o criador da Playboy). A explicação parece simples: esses e tantos outros grandes nomes têm em comum a paixão pelo cinema.
E foi para evitar um dos maiores apagamentos da história do cinema que eles se uniram (financeiramente ou com outros tipos de apoio, como depoimentos) para viabilizar o documentário "Be natural: a história não contada da primeira cineasta do mundo". Nascida em 1873, a francesa Alice Guy-Blaché foi uma pioneira não apenas para as mulheres no cinema, mas para o cinema em geral, com suas técnicas de uso da câmera, na sincronização de sons, na colorização, na comédia. Enfim, em tantos aspectos que definiram a forma de se fazer a sétima arte.
Ela foi contemporânea – e frequentadora dos mesmos círculos, ainda no século XIX – dos irmãos Auguste e Louis Lumière, de Georges Méliès e de Thomas Edison. Os homens citados, todos inegavelmente geniais, receberam muitos créditos por suas contribuições e invenções. Alice, que subverteu todos os papéis esperados de uma mulher daquela (e de tantas outras) época recebeu o quê? Ostracismo, dívidas, nenhuma notoriedade, crédito algum.
Muitos de seus filmes (e foram mais de mil!) simplesmente foram perdidos e não deixaram qualquer registro. E aí entra o excelente faro investigativo – uma das mais características mais bonitas e necessárias do gênero documentário – da diretora e pesquisadora Pamela B. Green, que sai em busca de rastros, vestígios e descendentes de Alice. Pequeno spoiler: ela encontra até a tataraneta da cineasta.
Green também entrevista diversos professores, acadêmicos, historiadores. E o principal: muitos atores e diretores, nomes importantes de Hollywood, que admitem nunca terem ouvido falar de Alice Guy-Blaché. De Peter Bogdanovich a AgnèsVarda, passando por Patty Jenkins e Peter Farrelly. Geena Davis, a atriz que advoga incansavelmente pela equidade de gêneros na indústria com seu InstituteonGender in Media, também dá seu depoimento.
Em um belo registro de amor ao cinema, Green recorre a colecionadores e à Biblioteca do Congresso Americano, onde algumas das obras de Alice ainda se encontram. E é assim, de documentos em documentos, de restos e sobras, que ela vai montando a colcha de retalhos que vai trazendo a cineasta francesa de volta à superfície.
O filme passou por Cannes 2018, pelo Festival de Londres e vem tendo exibições especiais nos Estados Unidos, sobretudo em painéis e eventos ligados à presença feminina na(s) indústria(s). Mas, em pleno ciclo dos (essenciais) movimentos #MeToo e Time’sUp, ainda parece muito pouco. O filme só pôde ser iniciado por causa de uma ação de financiamento online, mas teve dificuldades para ser concluído. As figuras famosas que aderiram ao projeto (Jodie Foster é, além de produtora, a narradora oficial do documentário) certamente deram um bom empurrão. Martin Scorsese, empenhado desde a década de 1990 na preservação da história do cinema com sua The Film Foundation, também é um que ganha agradecimentos especiais. Mas nada disso parece o suficiente para que o filme tenha um percurso sólido nos circuitos de cinema tradicionais. 
O apagamento de mulheres da história é, infelizmente, um projeto bem-sucedido de um mundo marcado pela brutal desigualdade de gêneros. "Be Natural" é uma pontinha, uma fagulha que, num momento tão crucial, tenta subverter essas regras. Que o nome de Alice Guy-Blaché seja falado em alto e bom som, com o título que ela merece: a de primeira cineasta do mundo!
O filme teve três sessões no Festival do Rio: dias 3, 4 e 5 de novembro.

*Marcella Vieira, jornalista, está na cobertura do Festival do Rio pelo Jornal Casa da Gente.  

Nenhum comentário:

Postar um comentário