Apagado dos registros da história
cinematográfica, o nome de Alice Guy-Blaché, contemporânea dos irmãos Lumiére,
volta à luz por meio de bom documentário produzido e narrado por Jodie Foster
por Marcella Vieira*
Não é sempre que vemos um filme que tem como
produtores executivos Jodie Foster, Robert Redford e Hugh Hefner (sim, o
criador da Playboy). A explicação parece simples: esses e tantos outros grandes
nomes têm em comum a paixão pelo cinema.
E foi para evitar um dos maiores apagamentos da
história do cinema que eles se uniram (financeiramente ou com outros tipos de
apoio, como depoimentos) para viabilizar o documentário "Be natural: a
história não contada da primeira cineasta do mundo". Nascida em 1873, a francesa
Alice Guy-Blaché foi uma pioneira não apenas para as mulheres no cinema, mas
para o cinema em geral, com suas técnicas de uso da câmera, na sincronização de
sons, na colorização, na comédia. Enfim, em tantos aspectos que definiram a
forma de se fazer a sétima arte.
Ela foi contemporânea – e frequentadora dos mesmos
círculos, ainda no século XIX – dos irmãos Auguste e Louis Lumière, de Georges
Méliès e de Thomas Edison. Os homens citados, todos inegavelmente geniais,
receberam muitos créditos por suas contribuições e invenções. Alice, que
subverteu todos os papéis esperados de uma mulher daquela (e de tantas outras)
época recebeu o quê? Ostracismo, dívidas, nenhuma notoriedade, crédito algum.
Muitos de seus filmes (e foram mais de mil!)
simplesmente foram perdidos e não deixaram qualquer registro. E aí entra o
excelente faro investigativo – uma das mais características mais bonitas e
necessárias do gênero documentário – da diretora e pesquisadora Pamela B.
Green, que sai em busca de rastros, vestígios e descendentes de Alice. Pequeno spoiler: ela encontra até a tataraneta
da cineasta.
Green também entrevista diversos professores,
acadêmicos, historiadores. E o principal: muitos atores e diretores, nomes
importantes de Hollywood, que admitem nunca terem ouvido falar de Alice Guy-Blaché.
De Peter Bogdanovich a AgnèsVarda, passando por Patty Jenkins e Peter Farrelly.
Geena Davis, a atriz que advoga incansavelmente pela equidade de gêneros na
indústria com seu InstituteonGender in
Media, também dá seu depoimento.
Em um belo registro de amor ao cinema, Green
recorre a colecionadores e à Biblioteca do Congresso Americano, onde algumas
das obras de Alice ainda se encontram. E é assim, de documentos em documentos,
de restos e sobras, que ela vai montando a colcha de retalhos que vai trazendo
a cineasta francesa de volta à superfície.
O filme passou por Cannes 2018, pelo Festival de
Londres e vem tendo exibições especiais nos Estados Unidos, sobretudo em
painéis e eventos ligados à presença feminina na(s) indústria(s). Mas, em pleno
ciclo dos (essenciais) movimentos #MeToo
e Time’sUp, ainda parece muito pouco.
O filme só pôde ser iniciado por causa de uma ação de financiamento online, mas
teve dificuldades para ser concluído. As figuras famosas que aderiram ao
projeto (Jodie Foster é, além de produtora, a narradora oficial do
documentário) certamente deram um bom empurrão. Martin Scorsese, empenhado
desde a década de 1990 na preservação da história do cinema com sua The Film Foundation, também é um que
ganha agradecimentos especiais. Mas nada disso parece o suficiente para que o
filme tenha um percurso sólido nos circuitos de cinema tradicionais.
O apagamento de mulheres da história é,
infelizmente, um projeto bem-sucedido de um mundo marcado pela brutal desigualdade
de gêneros. "Be Natural" é uma pontinha, uma fagulha que, num momento
tão crucial, tenta subverter essas regras. Que o nome de Alice Guy-Blaché seja
falado em alto e bom som, com o título que ela merece: a de primeira cineasta
do mundo!
O filme teve três sessões no Festival do Rio: dias
3, 4 e 5 de novembro.
*Marcella
Vieira, jornalista, está na cobertura do Festival do Rio pelo Jornal Casa da
Gente.
Nenhum comentário:
Postar um comentário