terça-feira, 23 de outubro de 2018

Lisboa e turismo, uma relação em crise

Documentário português acompanha com ironia as recentes mudanças na paisagem urbana lisboeta decorrentes do crescimento do turismo

Por Cristiana Giustino*
(de Lisboa, especial para o CASA DA GENTE)


Rooftop de turistas no doc AlisUbbo (foto divulgação)

Sob intenso nevoeiro, pouco a pouco um transatlântico engole o horizonte da cidade. Um balé de gruas de construção emoldura esta que é a primeira cena de Alis Ubbo (2018), documentário de Paulo Abreu que teve sua estreia mundial no DocLisboa, festival internacional de documentários. No filme (cujo título em fenício significa porto seguro)somos apresentados à cidade de Lisboa e sua história através dos audioguias e dos relatos de um desiludido condutor de tuk tuk, cicerone do espectador pelas ruas do centro histórico. Estas fontes de informação, meio duvidosas e por vezes contraditórias, contribuem para a atmosfera de ironia e distopia que o diretor imprime na sua obra.

Mais certas são as informações transmitidas pela fictícia Rádio Tuk Tuk, escutada diariamente pelo protagonista do documentário. “Há 9 turistas para cada habitante da cidade”, informa o locutor da rádio. De fato, segundo o Instituto de Planeamento e Desenvolvimento do Turismo (IPDT), nos últimos anos, o número médio de turistas que visitam Lisboa anualmente é de 4,5 milhões, número nove vezes superior ao número de moradores, que é de 504 mil. Em Barcelona, o número de turistas é cinco vezes superior ao de moradores, e em Londres, quatro vezes maior do que o número de residentes.


A Rádio Tuk Tuk de Alis Ubbo contribui à narração do documentário


Também vem da Rádio Tuk Tuk a informação de que já chega a 34% o percentual de imóveis do centro ocupados por estrangeiros. Ou seja, mais de 1/3 das casas do centro histórico de Lisboa são utilizadas como residência temporária de turistas.O dado, cuja fonte é o Jornal de Negócios, abrange moradias de bairros como Alfama, Mouraria, Castelo, Baixa e Chiado.

Os brasileiros têm contribuído para esta realidade. O número de turistas provenientes do Brasil que visitaram Portugal em 2017 é de quase 870 mil, um recorde, com crescimento de 39% face ao ano de 2016, ficando atrás apenas do número de visitantes do Reino Unido, Alemanha, Espanha e França. Parte considerável dos brasileiros tem como destino a cidade de Lisboa, contribuindo à média de 4,5 milhões de visitantes ao ano.

"Não tenho nada contra o turismo", disse o diretor Paulo Abreu na sessão première do seu filme, ocorrida dia 20 de outubro. Mas ratifica a impressão, recorrente entre seus conterrâneos, de que a população local têm sido expulsa de sua própria cidade. O filme é um reflexo, poético, da “discussão de relação” que os lisboetas vêm travando com instituições públicas que deveriam regulamentar práticas abusivas de hospedagem e controlar a especulação imobiliária.

O turismo, comumente relacionado ao desenvolvimento local, promotor de aumento de renda e emprego, tem também seus efeitos colaterais: infraestruturas sobrecarregadas, impactos negativos sobre a natureza, ameaças à herança cultural e habitantes empurrados para fora das cidades. Segundo o Conselho Mundial de Viagens e Turismo (WTTC, na sigla em inglês), Lisboa está entre as cidades onde os serviços públicos estão mais pressionados e a gentrificação, comum nesses casos, também tem se ampliado.

Ninguém nega que o turismo foi essencial para a retomada do crescimento econômico da cidade após a crise de 2008. Porém, as estratégias de fomento ao turismo adotadas em nível governamental, estimulando investimentos estrangeiros no centro histórico, vêm contribuindo para desequilíbrios na ocupação do tecido urbano.

Os mais atentos, ao caminharem pelas freguesias centrais da cidade, podem perceber uma imobiliária a cada esquina com anúncios de imóveis para compra e aluguel em suas fachadas. Por outro lado, há prédios inteiros, reabilitados e em excelentes condições de habitação, que se encontram fechados, dando sinais de que há uma bolha imobiliária prestes a explodir.

Protesto do movimento "Morar em Lisboa", 

realizado em abril de 2017

O Movimento Morar em Lisboa (MML), integrado por mais de 30 associações locais, ressalta os problemas de habitação que os lisboetas vêm enfrentando em decorrência do turismo e das políticas adotadas. Os valores de habitação subiram drasticamente de 2014 a 2017. Houve inflação de 13% a 36% nos alugueis e de 46% nos valores dos imóveis à venda. Assim, a oferta de locação por longa duração tem se tornado cada vez mais escassa.


Em contrapartida, a Rádio Tuk Tuk e Alis Ubbo anuncia também a tendência crescente da diminuição do número de turistas das ruas de Lisboa, que estão começando a preferir Turquia e Egito, destinos considerados mais baratos. Lisboa subiu 44 posições no ranking de cidades mais caras para se viver (Estudo Global Mercer 2018), assumindo a 93ª posição, superando inclusive o Rio de Janeiro, que perdeu 43 posições e agora ocupa o 99ª lugar.

* Cristiana Giustino é gestora e produtora cultural

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